sexta-feira

As canções de Schubert

O viajante sobre o mar de névoa, de Caspar David Friedrich (1818)

Franz Schubert é um desses exemplos que a História toma para chamar de Gênio. Sua morte prematura, seu caráter “angelical”, serviram para lhe trazer uma aura divina, assim como são divinos Mozart e Chopin. Vivemos, ainda hoje, conseqüências dos ideais da Era Romântica do século XIX. E essa é a época em que o artista, antes de tudo, é a representação de sua própria arte. Os temas macabros, sobrenaturais, trágicos – tudo isso atraía os artistas românticos. Adoecer e morrer jovem eram glórias que os eternizavam, e trazem para o nosso tempo a ideia romântica de Mito.

Afora toda essa fumaceira, vejo em Schubert um grande melodista. É difícil não ficar com uma melodia sua na cabeça, dada a habilidade que ele tinha em manipular esse material. Pra mim, pouco conhecedor que sou, o coração da obra de Schubert está em suas canções. O que fez nas Sinfonias e nos Quartetos de Cordas, tudo me parece inspirado na canção. Aliás, ele próprio tomou canções suas como tema para o quarteto A Morte e a Donzela e o quinteto A Truta. Tudo canta nessa música.

Nas suas canções, Schubert expõe seu gosto literário, sua natureza de músico popular, sua alegria, sua angústia, sua fé, e assim retrata uma época.

O lied, como é dito em alemão, é basicamente uma canção escrita sobre um poema, para voz e piano, em uma integração forte entre música e poesia. O piano tem papel significativo, pois não só fornece a base para o cantor: ele comenta, interroga ou afirma o que diz o poema, através de recursos harmônicos, melódicos ou de intensidade, criando o cenário para a estória cantada. Esse recurso seria levado a um alto nível em algumas das criações de Robert Schumann, cuja vida foi realmente a de um homem romântico.

O lied criou uma linhagem durante o romatismo alemão, passando pelas peças de Brahms e Hugo Wolf e chegando à grandiosa expressão emocional de Gustav Mahler. Mahler criou lieder acompanhados por orquestra, ao invés do piano, o que traz mais um fator expressivo: o timbre dos instrumentos comentando o texto. Me parece que também em Mahler, o núcleo da obra está nas canções. Mahler incluía em suas sinfonias motivos de suas canções, freqüentemente canções inteiras, colocando a voz em peças tradicionalmente instrumentais. Sua Canção da Terra representa o ápice e também o fim de uma era, assim como abre novas portas para o futuro.

O lied continuou no século XX na obra dos compositores atonais Schönberg, Webern e Berg e nas Quatro últimas canções de Richard Strauss, colega de geração de Mahler, talvez uma das derradeiras peças desse caráter, em uma época de caos e de busca de novas formas musicais. Paradoxalmente, é nessa época que se começa a recuperar as canções de Schubert, que são gravadas em discos, reeditadas, e divulgadas com aquela aura romântica que persiste no público, que agora compra essa música, vinda de um tempo remoto, e que não apresenta a confusão da música de Boulez e Stockhausen, que adotaram a música vocal de maneira bastante peculiar. É a época de apreciar a música do passado: o presente não importa, a não ser para alguns artistas de ouvido atento. E a música de Schubert não é nada caótica para os espíritos de maior “bom-gosto” do público.

Cantar e ouvir Schubert da maneira correta é praticamente impossível, pois não temos como resgatar uma época perdida no tempo. Mas a beleza da música persiste, embora muita coisa possa ser considerada açucarada ou piegas. Mas o que fica é uma sensibilidade admirável e uma habilidade espantosa com o material musical.

Um abraço, amigo leitor!

Ouça
Alguns Links para o Youtube

A Morte e a Donzela (Der tod und das Mädchen), cantada por Julia Culp.
A Truta (Die Forelle), cantada por Elisabeth Schwarzkopf.
Para a Música (An die Musik)
Rei dos Elfos (Erlkönig), em interpretação impressionante de Dietrich Fischer-Dieskau.
Serenata (Städchen), cantada por Werner Güra.
Os ciclos de canções A bela moleira (Die Schöne Müllerin), O canto do cisne (Schwanengesang), Viagem de inverno (Winterreise).

Quarteto de Cordas n. 14 em Ré menor (A Morte e a Donzela), tocado pelo Takacs Quartet.
Quinteto com Piano em Lá maior (A Truta), tocado por Clifford Curzon e membros do Amadeus Quartet.

Ouça também


Amor de Poeta, op. 48 de Schumann.
Quatro canções, op 17, de Brahms.
Canção da Terra (Das lied von der Erde), de Mahler
Sinfonia n.4, de Mahler.
Gurrelieder, de Schönberg.
Quatro últimas Canções, de Richard Strauss.
O martelo sem mestre (Le marteau sans maître), de Pierre Boulez.

Bibliografia e discografia

CANDÉ, Roland de. História universal da música (Vol. 2). São Paulo: Martins Fontes, 2001. 2 vol.

GROUT, Donald; PALISCA, Claude. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007. 5 ed.

KOSTKA, Stephan; PAYNE, Dorothy. Harmonia tonal com uma introdução ao século XX. 4 ed.


Leise flehen meine lieder. Coletânea de canções de Schubert, cantadas por Gundula Janowitz, Dietrich Fischer-Dieskau e outros. Disco, Deutsche Grammophon.

“Trout”Quintet; “Death and the maiden” Quartet. Christoph Eschenbach, Koeckert-Quartett e Amadeus-Quartet. CD, Deutsche Grammophon.

A bela moleira. Ciclo de canções. Hermann Prey, barítono. Enciclopédia Salvat dos Grandes Compositores. Disco, Philips, 1981.